29 de jun. de 2012

Outro exercício da oficina de Prosa Narrativa: escrever carta a partir do quadro "A má notícia" de Belmiro de Almeida.


Minha querida Duília,

     Posso, de antemão, vislumbrar o sobressalto que lhe atrapalhou o bordado quando a criada anunciou a chegada desta carta: a senhora certamente pensando tratar-se de mais uma das anônimas que ameaçam revelar nosso segredo, surpreendendo-se com minha ousadia em enviar, bem debaixo do bigode de seu marido, esta carta que tenho ainda em minhas mãos. Nesse mesmo quadro, vejo-a maquinando uma boa desculpa para escapar do olhar inquisidor do canalha que já indaga sobre o remetente e, antes que tal imagem volte às profundezas obscuras da imaginação, consigo testemunhar seus passos apressados para o quarto onde não será interrompida. Não me furto de perguntar: deste as duas voltas na tranca da porta? Conhecendo-a já com certa intimidade, sei que não e, por isso mesmo, é meu dever concluir logo o que reluto em dizer.
     Não devemos mais nos ver. Dói-me o peito dizer tal coisa, como se uma das flechas cravadas no santo Sebastião tivesse também me trespassado a carne. Saiba a senhora que o amor outrora declarado ainda existe e é forte como o fogo da lareira que tenho agora aceso, mas temo, sobretudo, pela senhora. Não crês no que digo? Pois tenha em mente que, se fecho os olhos, ainda posso vê-la como na primeira vez: o vestido de baile da senhora rodopiando naquele salão elegante, o aroma fresco da lavanda que usaste naquela noite sublime, o olhar discreto que trocamos. Da mesma forma, sem ter presenciado com estes olhos, apenas pelo que me contaste, posso vislumbrar os maus tratos de seu marido, aquele crápula. E justamente por isto, por saber do que o bandido é capaz, julgo ser demasiado arriscado continuarmos a nos ver. Esses meses foram deliciosos, mas bem sabes que o laço da corda está a cada dia mais estreito.
     Rogo-lhe que não tenhas nenhuma atitude monumental. Deixe os arroubos para as leituras ou para os sonhos. Sejamos sensatos e equilibrados neste momento. Prudentes, eu diria, como nos esquecemos de ser em todo este idílio amoroso. Portanto, minha senhora Duília, minha querida Duília, queime esta carta e livre-se dos vestígios. Não tente me encontrar. Sim, vou desaparecer por uns tempos e não posso confiar meu destino a ninguém, pois qualquer um, amigo ou adversário, pode ser o autor das tais cartas anônimas que destroem nosso laço. Sinceramente, espero poder ainda revê-la. E que este tempo seja breve.


Do sempre seu,

Carlos.



Trecho do conto "A última biblioteca" que faz parte do meu livro de contos "O beijo atrás do poste' (lançamento em 2013).


     Setenta e sete livros empilhados começam o gigantesco emaranhado da biblioteca. Do lado oposto, quase bloqueando a entrada, a réplica em terracota de Gizé e Quéfren. Assim dispostas, precariamente, as sentinelas competem pelo território e pelo direito de morrer primeiro: de um lado, Tolstoy, Pirandello e Drummond – na altura dos olhos enigmáticos da esfinge, que não deixam claro sua preferência – conversam sobre quem cairá primeiro e, com gritos mudos, especulam a eternidade e o que pensam seus vizinhos; do outro, a ponta esfacelada da pirâmide, por capricho do tempo não do artesão, espiona constantemente sua rival, do topo empoeirado (Borges) à base não encoberta pela cabeça desgastada da esfinge (Orwell). Entre as partes, ponderando, folha solta, datilografada e carcomida, aguarda o momento de se retirar da arenga pelo influxo de um vento menor.
    No rastreio pelo carpete bolorento a cena se repete, de um lado a outro, formando as margens de um rio sem afluentes, com árvores de livros que se embaralham adensando a confusão. Aqui e ali, mais folhas: boiam e se permitem enquanto, do teto, a noite avança em mergulho que esconde estrelas. Rente ao chão, depressões ou buracos, dependendo do ângulo em que se olhe, surgem à medida que se avança – exigem desvios complicados que, tanto para a esquerda quanto para a direita, aumentam o risco de se esbarrar em qualquer coisa que desequilibre o todo. As paradas para se ter a noção do caminho percorrido impõem não que se olhe para trás, mas que se debruce com cuidado sobre os buracos escuros. Como se fossem espelhos, inevitável ao olhar: o quê, além da camada fria da noite, escondem?
  (...) 

28 de jun. de 2012


Na (excelente) oficina de Prosa Narrativa que participei na PUC-Rio, com a Profa. Pina Coco, usei 'Diadorim' como pseudônimo. É um dos meus personagens preferidos. Em um dos exercícios da oficina, escrevi a biografia do pseudônimo. Aí está:


Nasceu em uma vereda pra lá de São João Nepomuceno, bem debaixo de um espinheiro branco que entrecortava a lua cheia. A parteira foi o pai, Laurindo Prazeres, que se tremia todo. O padrinho foi o tal Sete-de-Ouros, burrinho pedrês famoso, que naquela época pertencia ao corpulento Major Saulo da fazenda da Tampa, patrão de Laurindo. Parto difícil, sujo, esquecido, mas vencedor. Tirando a mãe que depois de ver o nenê e dizer: “Diadorim, vai se chamar!”, bateu os olhos na lua e de lá nunca mais voltou. Morreu ainda vivinha, com os olhos mais arregalados do sertão. Mesmos olhos que a menina herdou. Olhos de ver tudo enquanto crescia e se fazia homem sozinha, porque o pai sumiu com uma rameira. A menina entrou prum bando, pegou ziquezira, plantou nas coxas, cavalgou montes e amou. Essa última foi sua ruína, porque seguiu o coração, mas prendeu a língua com sete nós de arminho santo. Nunca falou que amava, nem pra sombra de todo dia. Cortou cabelo, botou calça, engrossou voz e cuspiu cachaça provando o que de verdade mesmo não tinha entre as pernas. No comprido das veredas, de andança em andança, pra não morrer de desespero, escrevia. A chuva, o sol, a poeira, o amor que cavalgava ao seu lado, o silêncio. Mas a morte encontrou uma encruzilhada perdida no cafundó e entreteceu. Bem quando decidia desfazer sua promessa e se declarar tirando a roupa forjada, tomou sete tiros, um pra cada nó santo, um pra cada vez em que podia ter dito e se calou. Morreu como a mãe, os olhos arregalados, mas o que viu não foi lua, foi tristeza no rosto do amado que lhe beijava a tez castigada pelo sol.