13 de abr. de 2012

HIEROGLIFOS

Marcados em diferentes tipologias com tamanhos que variavam conforme o espaço onde estavam escritos, os hieroglifos invadiram Miropol como uma praga noturna que se alastra pelos buracos que encontra pela frente. Muros, calçadas, paredes, janelas, grades, telhados, tampas de bueiro, chafarizes, postes, roupas nos varais, troncos de árvores, folhas caídas, continham símbolos coloridos, números, códigos, palavras estrangeiras, grafias arcaicas e uma infinidade de desenhos que se multiplicavam em muitos outros. Cada símbolo apontava com setas finas e tortuosas, que também formavam símbolos, outros que, por sua vez, apontavam outros, formando uma complexa teia de relações gráficas. E mesmo não sendo possível entender a mensagem por trás dos traços, pontos e ligaduras, percebia-se pelas relações que formavam entre si que o próprio desenho do símbolo continha a chave para o significado.
      Da noite para o dia, a cidade se transformou em outra pela presença incomum dos hierróglifos – como pronunciava o Dr. Vanderlinde Staindorff, linguista e filólogo polonês. O próprio doutor se encarregou de organizar uma comissão especial para a investigação do fenômeno. A comissão foi composta por cidadãos de comprovado valor social que entendiam de questões fora da normalidade cotidiana, conforme ressaltou em discurso o senhor Rodhis Lavum, prefeito de Miropol. Foram eles: a senhora Mirabell Pym, esposa do prefeito e presidente do CLUFAMI (Clube Familiar Miropolense, conhecido popularmente como Clube das Faladeiras de Miropol); o senhor Augustino Vander Pym, meio irmão da Sra. Myrabell e dono da charutaria, boutique de chapéus e luvas finas Vander Pym; o doutor Gleudson Periard, clínico geral e infectologista; Alastor Hümmen, fabricante de pianos; J.J. Machado, inspetor de polícia; o Reverendo Gregório, que declinou do convite; e o próprio prefeito que cedeu uma das salas da prefeitura para o escritório da comissão.
      Após longa confabulação sobre o primeiro local a ser investigado, seguiram para a praça do coreto abrindo espaço entre os muitos curiosos que ocupavam o local com suas lupas, binóculos e telescópios. Segundo puderam averiguar dos cidadãos, havia dois símbolos que destoavam dos outros pela simplicidade e que podiam significar tanto duas letras quanto dois números. Entre escritos em letra cursiva, pontos formando o rosto de uma mulher e códigos matemáticos intermináveis, os símbolos se exibiam no chão do coreto feito dois irmãos gêmeos, desenhados com perfeição por um estranho e inimaginável arquiteto: XX.
Perplexos com tamanha simplicidade, os membros da comissão ficaram calados tentando, cada um a seu modo, emitir opinião que pudesse elucidar o mistério. O prefeito já se preparava para fazer um discurso quando foi interrompido por sua esposa que, tendo se apropriado da lupa de um menino, deitou-se sobre o símbolo e, após alguns segundos de análise, começou a gritar histérica que havia descoberto o enigma. Recompondo-se, sem tirar os olhos do desenho, a Sra. Mirabell disse, em alto e bom som, que aquilo entre as suas pernas – e se corrigiu rapidamente dizendo que o desenho abaixo era formado por minúsculas palavras de tom erótico e que, portanto, a cidade deveria ser lavada imediatamente, pois se tornara um templo da luxúria.
No mesmo instante, os membros da comissão se viram empurrados do coreto por uma multidão de curiosos que queriam ver com seus próprios olhos o tal desenho. Um surto de excitação invadiu a cidade e mesmo os mais tímidos se viram desejando tocar alguém. As pessoas se abraçavam e beijavam, e em pouco tempo começaram a se despir.
Sem se dar conta do tempo ou do lugar onde estavam, os cidadãos começaram a dar vazão às fantasias reprimidas, revelando amores, remorsos, arrependimentos e culpas. Alguns começaram a ter surtos de pânico, outros choravam ou tinham acessos de riso, e havia aqueles que ficavam simplesmente parados olhando para o nada. Casais procuravam lugares escuros para suas cópulas, outros desmanchavam relacionamentos de anos e já procuravam pares sem qualquer pudor ou freio.
A turba prosseguia variando seu tamanho conforme o número de amantes, formando desenhos que indicavam o anterior ou apontavam o seguinte, como um caleidoscópio sempre em movimento. Cores, tons, ruídos, movimentos de avanço ou recuo, pausas, tudo representava um código específico do que se passava com cada cidadão imerso no coletivo. Quando parecia que tudo ia terminar, em função de uma pausa maior, um novo elemento se somava à equação resultando em um novo desenho que se multiplicava em muitos outros.
Teriam morrido nesse jogo sem se dar conta de que estavam representando um texto escrito na pele da cidade, e cujo desfecho ninguém aplaudiria, não fosse o vento rasgar os números e destelhar as palavras formando uma nuvem de símbolos vários. O mesmo vento levou também a memória das pessoas, deixando-as confusas sobre o motivo de estarem em outros lares, em outras camas, beijando estranhos, copulando com parentes, correndo como se fugissem ou parados como se definhassem. Vento que livrou as pessoas do desejo de serem mais do que miseravelmente eram.

Extraído do livro Contos de Miropol (lançamento previsto para 2012)

4 de abr. de 2012

COMBUSTÃO

Quando o filho de Durval saiu de casa, o prefeito de Miropol resolveu que aquela seria uma excelente ocasião para instituir mais um feriado na cidade. Os cidadãos ficaram de tal modo felizes e eufóricos com a notícia que houve uma espécie de surto de comoção com direito a ondas de choro, manifestações públicas de afeto ao rapaz e muita champanha estourada.
Precisamente às oito horas e quinze minutos da manhã de uma segunda-feira cinzenta, o gordo – como era chamado pelas faladeiras de Miropol – saiu caminhando pela porta da frente de sua casa, com uma cara muito vermelha e grandes manchas de suor na camisa desbotada. A respiração chiada e alguns lampejos de tosse rouca somados à caminhada vacilante, mas decidida, davam-lhe o aspecto de um personagem circense.
A notícia se espalhou com tanta rapidez que em poucos minutos uma multidão se aglomerava para assistir ao espetáculo. As pessoas não sabiam se choravam, aplaudiam ou saíam a chamar quem não estivesse ali. Em momentos de desequilíbrio, pés e mãos amparavam, com a delicadeza de um martelo esmurrando pregos, os passos do rapaz, mas ninguém se arriscava a ficar muito perto sob o risco de ser esmagado, caso ele viesse a cair. O único a quebrar esse limite foi o sempre apressado prefeito de Miropol – o senhor Rodhis Lavum – que, chegando ao local esbaforido e vermelho, só parou quando trombou com o jovem obeso que nesse momento pareceu mesmo desabar. A gritaria foi geral. Os dois foram escorregando para trás, tentando se agarrar às mangas das camisas um do outro, até que, por um milagre da santíssima, conseguiram parar se equilibrando nos pulsos alheios. Isso só foi possível porque, em matéria de peso, o senhor Rodhis se equiparava mais ou menos ao boi jamaicano – outro apelido carinhoso dado ao jovem pelas faladeiras de Miropol.
Após se recompor do incidente, o prefeito ordenou, em breve discurso, que fosse criado um feriado para aquele dia, conhecido posteriormente como “dia durvalino”. Sob aplausos acalorados, o prefeito desejou sucesso ao jovem na sua jornada e aproveitou para lembrar aos seus eleitores de seus decretos que sempre privilegiavam o povo miropolense. E partiu deslocando ombros e paletós.
Durante o trajeto restante até a praça do coreto, o filho de Durval continuou firme em sua caminhada. Às dez horas e cinco minutos, ele chegou ao pé da escada de ferro que levava ao alto do coreto. Lotando a praça, praticamente toda a população de Miropol esperava para ver o desfecho daquele evento colossal. No primeiro passo escada acima, houve um incrível calar de bocas que só não foi geral porque um choro de criança vindo de algum lugar distante cortou o ar. O quase silêncio se manteve em todo o vagaroso percurso até o alto, sendo rompido totalmente quando o javali inchado – mais uma vez as faladeiras exercendo sua criatividade – cambaleou dois ou três passos para trás, fazendo com que todos gritassem em coro. Antes que se consumasse uma tragédia, o filho de Durval conseguiu se equilibrar e, sob um silêncio de túmulo cimentado, caminhou com relativa desenvoltura até o alto.
Agarrando-se à grade de ferro do peitoril, viu o mar de rostos silenciosos que cravavam nele seus mil olhos coloridos. Encarou-os um instante e, em seguida, contemplou o céu repleto de nuvens cinzentas. Permitiu-se ficar assim durante um longo tempo. Dois anões que tentavam abrir espaço entre a multidão chamaram sua atenção de volta.
– Acho que ele vai pular. – Disse um deles se esticando para ver melhor.
– Vai nada! Vai é dizer alguma coisa. Alguma coisa grande. – Disparou o outro enquanto se enfiava no espaço entre duas bundas. – Aposto cem que não pula.
Abaixando a cabeça, começou a rir como se o espírito de uma hiena tivesse encarnado em seu corpo. Mesmo quem não estava presente na praça se arrepiou com aquela gargalhada sinistra: o excelentíssimo prefeito, que já dormia pesadamente em sua casa sonhando com os espartilhos de sua primeira professora se partindo em mil pequenos corações de chocolate, acordou berrando o nome de sua esposa, a Sra. Mirabell Pym, que naquela hora se encontrava na praça junto as suas queridas faladeiras de Miropol. Quando o relógio da igreja marcou dez horas e dez minutos, o filho de Durval começou a queimar. Não porque tivessem ateado fogo ao seu enorme corpo, mas espontaneamente, como se um raio invisível tivesse acertado sua cabeça acendendo o pavio do seu corpo. Queimando como um grande pedaço de carvão, continuou gargalhando e olhando as pessoas que a essa hora gritavam, fugiam, choravam. Definhou como uma tora que se torna graveto ardente. Sua pele esturricou, seus órgãos internos apareceram sob o tecido adiposo, seus ossos estalaram. O odor do seu corpo invadiu a praça como uma névoa de gafanhotos. Queimou, queimou, queimou.
Ainda com os olhos nas órbitas, olhou os corpos abaixo se trombando como baratas desesperadas pelo veneno, mas tudo o que conseguiu enxergar foi a sua velha casa: a tinta descascada das paredes, as cortinas amareladas presas em laços de fitas largas, o galo de metal que apontava o norte no alto do telhado, o jardim cheio de ervas daninhas com o balanço enferrujado. E quando seus olhos queimaram de todo, imaginou seu velho pai fumando seu cachimbo de ébano, vagarosamente, soltando lufadas de fumaça pelo espaço da sala, a cabeça tombada para trás, as pernas magras cruzadas elegantemente, as chinelas pendentes quase a cair, o rosto enrugado; imaginou-o gritando com a voz rouca: "Hoje é um bom dia para um passeio, meu filho. Por que você não desce daí?".
Antes que perdesse de vez os sentidos, veio-lhe uma lembrança da infância, quando seu pai o pegava no colo e o rodava no ar imitando o barulho de um avião dizendo num grande sorriso: "Um dia, meu filho, você vai ser grande e quando as pessoas te olharem vão fechar os olhos por causa do seu brilho!"

Extraído do livro Contos de Miropol (lançamento previsto para 2012)