11 de dez. de 2011

Barba poética

      Não sei filosofia. Para não dizer que sou um completo ignorante, tenho de cabeça uma ou outra frase que, aliás, nunca digo: tenho-as mais por gosto estético (o som, e não o sentido) do que propriamente para arrotar sabedoria. Afinal, frases feitas, principalmente as filosóficas, trazem consigo, acredito, mais o risco do embate com um adversário verdadeiramente sábio do que a glória da admiração dos ignorantes. Ainda assim, do meu silêncio honesto, vejo as pessoas insistirem em me atribuir um conhecimento filosófico e intelectual que nunca tive e nem tenho a pretensão de ter. 
      Ontem, por exemplo, uma colega de trabalho, com quem mal converso e que tenho a certeza de jamais ter conversado sobre qualquer assunto que não fosse o trivial de duas pessoas que trabalham juntas e mal conversam, abordou-me um tanto aflita para que eu a ajudasse numa “questão filosófica”. Suas palavras não deixaram dúvidas: preciso desesperadamente que você me ajude em algo difícil, e você é o único que pode, já que entende tanto de filosofia. Ao ouvir isso, fiquei duplamente perplexo, tanto por ela ter me procurado já com uma imagem formada a meu respeito, mesmo com o nosso histórico de praticamente estranhos, quanto pelo uso deliberado que ela fez de dois vocábulos pertencentes à classes de palavras que julgo perigosíssimas: os advérbios (desesperadamente) e os adjetivos (difícil). Logo imaginei o pior.
      Passado o susto, minha primeira reação foi a de refutar peremptoriamente aquele predicado intelectual, porém acabei cedendo aos apelos da moça, não porque tivesse aceitado a máscara di dottor, mas porque queria me livrar da moça a qualquer custo. Uma enxurrada de palavras foi despejada sobre meus ouvidos que tentavam, pobrezinhos, acompanhar tanto assunto. Ao final, suspirei profundamente tentando ganhar tempo para encontrar o que dizer, mas, para meu completo espanto, fui interrompido por ela que já me abraçava e agradecia em quatro idiomas, talvez dois dialetos. Olhando-me como somente o fazem os alunos aos mestres queridos, disse algo sobre a minha barba. Naquele momento, não entendi direito o que minha barba tinha a ver com tudo aquilo, mas, depois de refletir com os meus botões, tive um insight digno dos grandes: é minha barba a responsável pela fama de intelectual.


      Imagino se Nietzsche, algum dia, perguntou-se o que achavam do seu farto bigode ou que impressão aquele monumento ambulante causava nas pessoas. Claro que Nietzsche nunca deve ter pensado uma coisa dessas, primeiro por ser um filósofo de verdade, e segundo por ter coisas muito mais importantes para pensar. Mas será que Nietzsche sem aquele bigode teria uma imagem tão intelectual? Aposto que se eu tirasse a barba esse rótulo infundado diminuiria drasticamente e eu não precisaria passar por situações constrangedoras. Sempre me imagino sendo desmascarado por algum estudioso de Platão, Shoppenhauer, Foucault etc., ávido por uma boa discussão hermenêutica ou metafísica, e essa simples construção imagética da minha mente me dá câimbra, azia e toda a sorte de mal estares, afinal, porque sou eu sendo desmascarado se eu nunca me proclamei um entendedor de filosofia?
      Tudo isso, esse meu incômodo e inquietação, leva-me a pensar que há mesmo uma quantidade grande de pessoas acreditando mais no hábito que no monge, mesmo que o monge nunca tenha se pretendido santo. É por isso que não abandono o que gosto e sou muito honesto nesse ponto: uso barba porque gosto e não para que acreditem na minha (inexistente) intelectualidade, mesmo que ela (a barba) me traga algumas dores de cabeça. Faço questão de deixar isso registrado aqui, e só não escrevo um manifesto ou lavro este desabafo em cartório, porque também seria dar atenção demais à ignorância alheia que, grosso modo, pode ser minimizada com a leitura de meia dúzia de bons livros. Se querem acreditar em algo que não é verdade que continuem, mas não me chamem para cúmplice e nem me imputem uma culpa que não tenho. 
      Só sei que nada sei, e que, com barba ou sem barba, ainda está pra nascer o filósofo que conseguirá captar a poesia das coisas, dos mundos, das naturezas, internas e externas, líricas e metafísicas, jovens e velhas, como só os poetas são capazes de criar.