25 de mai. de 2012

O corte de Oboé

       Desesperado, Oboé berrava. Dona Paulicéia pingava com cuidado o alicate no dedo do menino, mas remédio nenhum parecia galopar a dor do corte. A longa crina cinzenta caía no rosto materno atrapalhando a televisão. Com as costas da mão, dona Paulicéia afastava os rios de seus olhos, mas, teimosos, voltavam rapidamente.
       O menino se debatia a cada poça do remédio pingado e não ouvia as cabalas da mãe. Ela dizia: calma, meu milhinho, a dor vai caçar, eu prometo... E pensava em como tudo seria mais ácido se o pai do menino estivesse ali, se não tivesse rugido com aquela ariranha loura.
       Foi bem numa noite de inverno, quando tudo escoiceava por causa da guerra recém-ensaboada. Não havia botina pra comer nem anágua pra beber. O querosene era disputado a tapume e os poucos que conseguiam não tinham metalofone para acender o lumaréu. Era uma penúria de descascar, como dizia o polvo. Seu Fagote, pai do pequeno berrante, era um faz tudo e se orgulhava de ter várias provisões: varredor de lua, cocheiro de almanaque, limpador de poliedro, caçador de pomodoro, cuspidor de rebotalho, curva e reta. Foi justo quando emprestava um desses serviços, formidavelmente o mais perigoso, contador antônimo de bugalhos, que se deparou com a tal num vestido azul duquesa. Apaixonou-se e rugiu para sempre. Nunca mais foi cisto.
       A cada mínima nota acontecida com Oboé, desfolhava-se ela em mil cuidados, para que o menino não morresse a cor da perda, mas era inútil. Ele sempre morria. Muito. E não heresia aliviar a preocupação da mãe, nem penava por ela, berrava e berrava até a guelra estourar. Parecia culpá-la. Com tamanha auscultação, dona Paulicéia ia afinando e isso já era visível a olho cru, mesmo por um prego.
       Esse corte no dedo foi a gota mágoa. Como mãe, que adoçava e protegia o filho, teria ainda vivido mil panos para continuar a desembainhar seu papel de pão, sempre com um pólen quando chorasse, uma cabala de pergaminho, um cedro doce, rosácea pintada, betume espinho. Mas o ser humano frágil e cansado falou mais alvo. Pingou a última poça de alicate, ouviu o último berro do milho e caiu luminescente na rama de madeira da fala humilde.         

16 de mai. de 2012


Pai postiço

     Olho meu sobrinho: corre pra lá, pra cá, pega um brinquedo, brinca, larga, pega outro, brinca, torna a largar, corre, chama a mãe, grita, corre, assiste um desenho, canta, corre, brinca, sobe, desce, e assim vai o dia. Experimenta tudo, todos, sem jamais terminar nada, mas não há nada que não faça com toda sua energia, juventude e vida.
     Às vezes, entre uma coisa e outra, para estático por poucos segundos, olhando para um lugar que só ele vê. Percebemos e nos perguntamos onde estará, mas o caos recomeça, atrapalhando-nos. Ninguém sabe que é nesses momentos de pausa que mais reconheço nosso parentesco. Por mais traços que tenhamos em comum, físicos ou de personalidade – e são muitos – sinto-o como sangue muito mais quando ele sai de si, quando deixa de lado sua herança e condição de ser infantil para existir na sua dimensão inacessível.
     Nesse espaço sem margens, somente lá, com ele, consigo imaginar-me como parte, podendo ser de fato filho, irmão, sobrinho, tio, pai e, num consenso maravilhoso da natureza, filha, irmã, sobrinha, tia, mãe. No reverso desse existir, teríamos as conversas que não podemos ter sendo quem somos, por exemplo as que conviriam a um pai ter com seu filho a respeito de tudo o que porventura pudesse surgir como assunto: quem se leva para a mesa (e para a cama), como se deve morrer, quando se deve viver, o que fazer com as palavras e o silêncio. Ficaríamos assim por dias, suspensos e infatigáveis.
     Olho-o novamente. Disfarço, atrás de um sorriso, meu constrangimento de pai postiço, virado pelo avesso, ainda perdido em alguma vereda paralela e marginal, recebendo de volta sua incapacidade de esconder o que realmente quer dizer. Seu coração, assanhadamente aberto para mim, gritando, correndo pra lá, pra cá, subindo, descendo, me chamando, vamos pai, vamos mãe, finalmente parando para me esperar, vamos, entre comigo. Desvio o olhar e repreendo-o, que negócio é esse, me respeite, sou seu pai, não, de castigo, não pode brincar. Seu sorriso branco, desafiador, seu gingado, seus atalhos íngremes, suas rimas raras, seu carinho punidor.
     Imagino admirado como seria a minha vida de pai, mãe, junto a esse filho que não é meu, sangue do meu sangue, que corre pra lá, pra cá, pega um brinquedo, brinca, larga, pega outro, brinca, torna a largar, corre, chama a mãe, grita, corre, assiste um desenho, canta, corre, brinca, sobe, desce.

1 de mai. de 2012


As pérolas de Nasrudim
Ou
Uma crônica de autoajuda

Hoje recebi um convite maravilhoso e irrecusável para qualquer bom gourmand: almoçar de graça no estrelado restaurante do chef  Claude Troisgros, o Olympe. Debaixo das cobertas e já com uma pontada de arrependimento na língua, recusei elegantemente o convite. Desliguei o telefone e a sensação de perda cresceu vertiginosamente. Claro que eu podia ligar de volta e dizer que havia mudado de ideia, que estaria lá em meia hora etc., mas o tempo frio e chuvoso prevaleceu sobre a minha vontade e, assim, permaneci na toca. Porém, não pude deixar de pensar nas conexões que perdi ao declinar do simpático convite.
Refletindo sobre isso, enxergo claramente que determinadas escolhas podem modificar drasticamente o curso de uma vida. Alto lá, meus amigos! Não se precipitem nas suas conclusões. Deixem que termine meu pensamento. Pense cá comigo: por um lado, é óbvio que o fato de ter escolhido ficar em casa com meus livros, vinho e coberta ao invés de estar à mesa do Zeus da culinária brasileira não vai me tirar grandes oportunidades de conhecer tal ou qual pessoa, saber disso ou daquilo, quando muito tenha me tirado apenas uma tarde de sublime paladar e prazer na companhia de amigos queridos; por outro lado, talvez, eu tenha perdido mesmo a possibilidade de conhecer essa ou aquela pessoa, que pode vir a se tornar importante na minha vida, ou ainda ouvir uma ideia, palavra, frase, música, que vá, de algum modo misterioso e insondável, alimentar minha produção artística. Como saber? Nesse caso, agora, não há como. O passado já era.
Indo mais a fundo nesse raciocínio, penso que os dois caminhos – ir ou não ir, ficar ou não ficar – encerrem, cada um em suas respectivas paisagens, um enigma que pode ser tanto uma dádiva quanto uma armadilha: o que seria melhor, banquetear com Zeus no Olimpo tendo a companhia de outros maravilhosos deuses ou cear na solidão do campo tendo apenas a companhia dos faunos, ninfas e seres do séquito de Baco, o deus do vinho? E se me perguntarem, está certo, mas por que poderia ser uma dádiva ou armadilha?  E, se assim for, como saber diferenciar? Respondo, em primeiro lugar, à segunda questão: que saber diferenciar só me parece possível conhecendo o lugar, ou seja, onde cada uma dessas “pérolas”, como as denominou o mulá Nasrudim, está. Se não ficou claro, talvez a narrativa de Nasrudim responda melhor às duas questões e de quebra ainda me ajude a concluir o raciocínio (para o meu próprio bem!).
Segundo as narrativas registram, o imprevisível mulá Nasrudim resolveu aceitar um desafio lançado aos pretendentes à mão da filha de um poderoso rei. Muitos sábios famosos haviam tentado e nenhum deles obteve sucesso. Para se casar com a princesa, era preciso descobrir, somente olhando, qual de sete enormes vasos continha uma pérola. Os outros estavam repletos de bichos peçonhentos. Quando chegasse a uma conclusão, o candidato deveria abrir o pote e pegar a pérola. Quando entrou no salão onde estavam os vasos, Nasrudim começou a gritar que já tinha resolvido o problema e que trouxessem logo sua esposa. O rei foi chamado às pressas e quis saber então em qual vaso estava a pérola. Nasrudim sorriu e disse: “É simples. A pérola está em todos.” Todos riram do mulá. Ele se aproximou de um dos vasos e, mais uma vez, falou: “Se a pérola estiver nesse vaso, significa que não está nos outros, porém se esse vaso contiver cobras, aranhas ou escorpiões, significa que a pérola não está nele, mas em qualquer um dos outros. Assim, eu digo que a pérola está em todos.” Então abra e pegue, disse o rei já irritado. Ah, mas isso já é outra história, retrucou Nasrudim.
Por sorte, na maioria das vezes, não temos que passar por situações como a do impagável Nasrudim, mas às vezes parece que lidamos com verdadeiros vasos que podem conter tanto dádivas, quanto armadilhas. E nesses momentos como saber em qual deles está o quê? Repito: não acho possível, pelo menos ainda. Mas pensando pela lógica irreverente de Nasrudim, somos levados a descobrir que a escolha consciente determina sim onde está a dádiva e onde se esconde a armadilha. Acredito que a dádiva sempre estará onde você estiver inteiro, mesmo que a escolha não tenha sido das melhores. Pense: que ele poderia ter “arriscado” abrir um dos vasos, não resta dúvida, mas a que preço? Sua vida? E pelo quê mesmo? Uma ilusão, uma miragem? Mas era a princesa, a filha do todo poderoso rei! Se ele tivesse arriscado, se tivesse acertado o vaso, poderia ter se casado e conheceria um mundo totalmente novo e cheio de maravilhas, vocês podem indagar. Mas e se não tivesse acertado? E se, e se... Tenho certeza que Nasrudim sabia bem qual era o prêmio como sabia também o preço para tê-lo, e assim escolheu o melhor caminho para ele naquele momento. E, exatamente por isso, ele sabia que a verdadeira dádiva não estava dentro de um dos vasos, mas na sua escolha consciente entre abrir ou não abrir, naquele caminho possível e não nos outros supostos e imaginados. E, aliás, como o próprio mulá finalizou, que o “e se” permaneça no domínio sem fronteiras da literatura, da arte, porque a vida já é outra história.
Um brinde!