Insônia
Parte 1
Até este instante de certeza, em que dissolvo a mágoa nestas palavras, apenas
suspeitava viver num permanente estado de insônia, essa velha amiga. Ela poderia
já estar na maternidade aguardando o momento em que eu nasceria para grudar-se em mim ou, mesmo antes, no exato momento em que meus pais
se conheceram. Mas como só agora, nessa altura da vida, tenho certeza de sua presença?
Há um dito, que me falha ser popular ou lido em livro, e mesmo as
palavras certas (perdoem-me), que fala da coisa mais essencial na vida do homem:
estar vivo. Tudo o mais é circunstancial, não importa. No entanto, há “coisas” na
vida que encarnam esse status
essencial recusando-se a uma natureza circunstancial. O amor, para citar um
exemplo máximo, é uma delas. A insônia é outra, embora seja confundida, não sem
razão, com memória, inspiração e até mesmo paixão.
Ao contrário da memória, a insônia é um estado permanente – como o amor –
e sua presença só é percebida quando tudo o mais dorme. Trata-se de um vazio,
por vezes desesperador, em outras vezes preenchido por pensamentos e lembranças.
Sua condição é total enquanto dura, ou seja, enquanto o sono – a morte – não
rouba-lhe o sustento. Mas é sempre estável, sem a instabilidade da memória, os lampejos
da inspiração, os arroubos da paixão. Mesmo quando há ausência, quando o sono
permite que o corpo se refaça, ela permanece sentada em si, esperando na cochia
a deixa para subir ao palco.
“Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”, nos diz Shakespeare
através de um de seus personagens. Tenho quase certeza de que essas palavras
foram sussurradas ao fim de uma insônia atroz, pouco antes do corpo tombar
extenuado após gloriosa batalha entre a mente, o coração e a pena. Como
sei? Pelo mesmo motivo que me fez levantar ainda agora nessa madrugada
calorenta para escrever estas palavras. Porque estou vivo. Ter insônia é estar
vivo e escrever é ter consciência de que se vive.
Gosto de pensar que ao escrever dissolvo todas as pedras e que trabalhar
as palavras faz com que a seiva purifique-se mais e mais. É somente durante o
silêncio da insônia – o único silêncio possível – que consigo escrever, que
consigo estar vivo. Imerso e suspenso neste silêncio exorcizo as vozes quando
torturo as palavras: “Lavro versos / curtos / como orações / palavras são
legiões / de demônios / expulsos / corto advérbios / pronomes / poupo os
pulsos.”[1]
E ainda posso deitar-me sob um coqueiro perdido nas areias de um deserto e ler
esses versos, e outros como:
eu ostra
cismo
cá com minhas
pérolas
.
.
.
Cacos no
abismo[2]
Escrever é outra forma de ler.
(A crônica continua, mas agora preciso dormir. Boa
noite)