4 de jan. de 2013


Insônia

Parte 2

   Uma única palavra encadeada após outra pode oferecer tantas possibilidades de escrita e leitura quanto as noites que se descortinam dentro da noite de um insone ou as leituras diferentes do mesmo texto. Mas cada palavra encerra um significado preciso. “Teto” não é o mesmo que “céu” que por sua vez não é o mesmo que “teto de estrelas”. Mas isso não é óbvio? 
   De certa forma, esta 'precisão' de significado que cada palavra tem (não sou nem um pouco a favor de sinônimos) me lembra a estória do soldado que volta da guerra e se perde nas ruínas da cidade onde nasceu e viveu durante toda a sua vida. Sem conseguir distinguir as ruas e avenidas destruídas, porque cada monumento caído, muro derrubado, árvore arrancada e tijolo pulverizado criavam uma arquitetura diferente da que conhecia, ele se dá conta de que sua casa podia ser qualquer uma e ao mesmo tempo todas. Por isso, decidiu que não teria mais casa, que dormiria ao relento. Deitou-se e admirou o céu estrelado. E assim passou o resto dos seus dias, mesmo depois da cidade ter sido reconstruída.
   Talvez esta pequena estória não faça muito sentido ou não tenha lógica para as pessoas racionais. Mas de que adianta a lógica, o "sentido", se não houver alguma beleza na paisagem (ou na escrita/leitura)? Para um insone, pelo menos um que passe suas noites escrevendo, encadeando palavras em um jogo eterno de criar novas ruínas, ter sentido ou mesmo lógica não é o primordial. 
   A busca será sempre por um momento fugaz e tangível de beleza, como presenciar uma flor nascer da ranhura causada por uma bala de fuzil numa manhã fria de inverno, no exato momento em que uma menininha lambe seu sorvete preferido sentada com seus pais em um banco de praça sob um sol escaldante de verão. 

12 de dez. de 2012


Insônia

Parte 1

     Até este instante de certeza, em que dissolvo a mágoa nestas palavras, apenas suspeitava viver num permanente estado de insônia, essa velha amiga. Ela poderia já estar na maternidade aguardando o momento em que eu nasceria para grudar-se em mim ou, mesmo antes, no exato momento em que meus pais se conheceram. Mas como só agora, nessa altura da vida, tenho certeza de sua presença?
     Há um dito, que me falha ser popular ou lido em livro, e mesmo as palavras certas (perdoem-me), que fala da coisa mais essencial na vida do homem: estar vivo. Tudo o mais é circunstancial, não importa. No entanto, há “coisas” na vida que encarnam esse status essencial recusando-se a uma natureza circunstancial. O amor, para citar um exemplo máximo, é uma delas. A insônia é outra, embora seja confundida, não sem razão, com memória, inspiração e até mesmo paixão.
     Ao contrário da memória, a insônia é um estado permanente – como o amor – e sua presença só é percebida quando tudo o mais dorme. Trata-se de um vazio, por vezes desesperador, em outras vezes preenchido por pensamentos e lembranças. Sua condição é total enquanto dura, ou seja, enquanto o sono – a morte – não rouba-lhe o sustento. Mas é sempre estável, sem a instabilidade da memória, os lampejos da inspiração, os arroubos da paixão. Mesmo quando há ausência, quando o sono permite que o corpo se refaça, ela permanece sentada em si, esperando na cochia a deixa para subir ao palco.
     “Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”, nos diz Shakespeare através de um de seus personagens. Tenho quase certeza de que essas palavras foram sussurradas ao fim de uma insônia atroz, pouco antes do corpo tombar extenuado após gloriosa batalha entre a mente, o coração e a pena. Como sei? Pelo mesmo motivo que me fez levantar ainda agora nessa madrugada calorenta para escrever estas palavras. Porque estou vivo. Ter insônia é estar vivo e escrever é ter consciência de que se vive.
     Gosto de pensar que ao escrever dissolvo todas as pedras e que trabalhar as palavras faz com que a seiva purifique-se mais e mais. É somente durante o silêncio da insônia – o único silêncio possível – que consigo escrever, que consigo estar vivo. Imerso e suspenso neste silêncio exorcizo as vozes quando torturo as palavras: “Lavro versos / curtos / como orações / palavras são legiões / de demônios / expulsos / corto advérbios / pronomes / poupo os pulsos.”[1] E ainda posso deitar-me sob um coqueiro perdido nas areias de um deserto e ler esses versos, e outros como:

eu ostra cismo

cá com minhas pérolas

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Cacos no abismo[2]

Escrever é outra forma de ler.






(A crônica continua, mas agora preciso dormir. Boa noite)




[1] Exorcismo - Christiana Nóvoa.
[2] Haikai - Christiana Nóvoa.

6 de nov. de 2012

Interrompo momentaneamente o trabalho e roubo da estante 'Laços de Família' de Clarice. Me dou conta de que no caminho deixei 3 contos pra trás. Mergulho, na verdade sou tragado pelas palavras flutuantes e num instante vislumbro o fundo em que nascem suas raízes, mas compreendo no momento seguinte que atrás de morro tem morro. Estou então parado diante da majestosa árvore, olhando o tronco como se pudesse ver a seiva correndo dentro do caule. Uma sensação ardente me devora: a de que faltei aula não por trabalho mas por desejar arrancar com meu canivete uma lasca dessa árvore. Me sinto triste e belo. Ficarei esta noite (e as próximas e talvez todas as que me restam nesta vida) por decifrar isto:

"Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração." (LISPECTOR, Clarice. A imitação da rosa. In: Laços de Família, 1998. P. 47)

24 de out. de 2012


Pequena crônica sobre um cadáver



     Como de hábito, passo por um de meus sebos. Cumprimento um, outro, observo o que passeia pelos esotéricos, o que folheia os periódicos, o que para diante dos best-sellers, percorro as estantes e chego à mesa de seu Ananias (sim, Ananias!). Ele sorri (já desisti de contabilizar a fortuna que lhe passei ao longo dos anos). Alguma novidade? Ele puxa seu bloco de folhas mal cortadas e folheia. Não, nada. Agradeço e me preparo pra sair antes que comece a espirrar. Viro-me já com o rabo de olho nos romances. Dou de cara com uma menina linda entrando. Cuspo meu coração palpitante que por sorte não lhe bate na cara. Ela não me dá atenção. Pairo no conjunto de sua beleza, no rosto branco onde duas jabuticabas desafiam a natureza e existem azuis, nos cabelos fartos que escorrem pelo corpo como uma cachoeira de águas escuras, mas não deixo de notar sua dificuldade com a bolsa cheia de livros. Tento ajudar, mas ela vence a fraqueza pela rapidez com que deposita a bolsa sobre a mesa. Sinto-me vencido por uma autêntica amazona. Penso no que falar, quando quero sou imbatível em abordagens iniciais. Pela primeira vez ela me olha. Olhar puro, que é ou não é, quer ou não quer. Aquele não queria. Devo ser pra ela como essas edições que entulham as estantes e podem ser encontradas em qualquer sebo do país. Vou me afastando devagar até parar diante do saldão. Escrava Isaura do Bernardo Guimarães por 2 reais. É deprimente. Meto a mão e folheio. Um vislumbre do meu tempo de escola que não chega a ser uma madeleine. Liberto a escrava da fileira onde as K7´s speak-up´s predominam e devolvo-a para a estante destinada ao cânone brasileiro. Decido ir embora. Viro-me para mais uma espiada na menina linda e sou assaltado pela surpresa de vê-la me observando com atenção. Seu Ananias me salva da paralisia com sua voz alta e sonora. Chego à mesa sentindo o olhar dela cravado em mim. Me dou conta de que há muito tempo não me sinto vibrar por uma mulher com tamanha intensidade. Normalmente é como um palpitarzinho de asas, um quererzinho aqui, ali, um ah quem sabe, deixa fluir, ela é isso, aquela é aquilo, gosta de mim, mas é comprometida, fuma, é muito nova, é muito velha, é muito isso, muito aquilo... Encaro-a com confiança, afinal não sou mais um menino. Vacilo. Como é possível tremer assim, jesus?! Será que ela quer me dar o telefone?, devaneio. Seu Ananias me chama novamente. Você é mesmo sortudo, rapaz! Estende um livro em cuja capa se lê: A Menina Morta, Cornelio Penna. Seu Ananias pega o bloco de folhas mal cortadas e com uma caneta vermelha risca o primeiro livro da minha lista de pedidos. Falei pra ela que você quer comprar, diz como se eu fosse um cliente ilustre. Sinto-me bem. Abro a boca pra falar, mas fico mudo como o menino antes do primeiro beijo. Era da minha mãe, ela diz. Tem a assinatura dela na capa. E o seu telefone, tem?, penso. Quanto quer, pergunto. Seu Ananias olha pra mim e sorri. O diabo do velho simpatiza mesmo comigo! Não sei, 15 reais?, ela vacila. Saco na hora a carteira e tiro uma nota. Fica com 20, pela assinatura. Ela pega a nota e sorri, os dentes dela são mais amarelos do que eu esperava, mas mesmo assim lindos. Ela agradece e se vira pra continuar a negociação. É minha deixa. Saio rápido, quase correndo, antes que ela tenha a possibilidade de descobrir o que fez. Desconfio que até mesmo seu Ananias não tem ideia do valor do livro na internet, porque se soubesse compraria dela por uns 5 reais e venderia pra mim por uns 100, e eu ainda compraria... Entro em casa ávido, abro o livro e começo a ler. Nem me preocupo em limpá-lo. Primeira, segunda, terceira página e só o que vejo são dois olhos azuis num rosto lindo, o cabelo desaguando no corpo firme. O cheiro de poeira invade minhas narinas e começo a espirrar, pronto! O sr. imbatível em primeiras abordagens provou o que é na verdade: um imbecil, um idiota inepto, uma nulidade. Quanto quero?, QUANTO QUERO? Você tem ideia de que esse é um dos romances mais importantes da nossa língua, um dos mais bem escritos? Que passou despercebido durante um bom tempo e que foi resgatado graças ao bom senso do crítico tal e qual (óbvio que citaria nomes pra impressioná-la mais ainda), e que hoje custa mais de cem reais na internet?! É artigo raro, raríssimo! Ainda mais sendo vendido por você (isso seria demais, tipo cantada barata?). A essa altura ela ficaria espantada com minha explanação, talvez até corasse pela sua ignorância no assunto. Exclamaria um "nossa!" e eu aproveitaria pra convidá-la a negociar melhor o valor do livro em algum café próximo. Papo vai, papo vem, risos aqui, acolá, nossa como você é honesto, inteligente, como você é bonita, cheirosa, telefone anotado no guardanapo, beijos, dias depois cinema no fim de tarde (Intocáveis, com certeza!), jantar e aí sim leitura. Talvez até de graça! Depois dessa, imbecil, o troféu de campeão mundial em primeiras abordagens já é seu. Agora lê, lê seu livrinho precioso, e espirra! Espirra tudo o que tem direito sobre o cadáver da menina morta.



22 de out. de 2012

Trecho do conto "O beijo atrás do poste" que dá título ao meu livro de contos 'O beijo atrás do poste' (lançamento em 2013).



     Quem beijava atrás do poste não era eu – nem ela –, assim como a sombra derramada na calçada não era do mesmo sol que me queimava o rosto. A mão escancarada, passeando pelo corpo jovem dela, não era a minha: segurava a solidão de um livro fechado (e não o seio macio). Onde estaria então? Naquele amor atrás do poste, mais do meu desejo que daquela lascívia? Não seriam minhas as mãos naquele corpo firme? Não! Onde estou então, me perguntava.
     Imaginava ela naquela boca: era ela! O beijo – as bocas escondidas pelo concreto e pela sombra, ambas esvaindo-se, febris, alimentadas pelo contato da carne delicada e úmida – não pertencia a eles: pertencia a mim, a ela. Podia, naquele instante, no beijo deles, partiturar seus movimentos e pausas; reger grunhidos, moleza, tomadas de fôlego, arrancadas, mordidas, beliscões, suspiros; contemplar o rubor em forma de manchas na pele branca e sardenta dela. Sentir seus poros, pelos, mamilos, nuca de bicho acuado, a calcinha molhada.
     O meu corpo vivo no corpo dele roçando-se no corpo dela, delas, buzinando contra o torpor do dia, estripando o tédio, a monotonia, as coisas, a rotina. A serpente despertando em mim, movimentando a folhagem, passeando livre entre os brotos, entrando e saindo dos buracos, tocas, arapucas escondidas, subindo vergalhões e vigas, arrebentando o reboco malfeito, perdendo-se, sumindo de vista, deixando a pele fria no silêncio atrás de si. Fora de mim, do que me pertencia, pulsava em harmonia perfeita com aqueles corpos. 

  (...)