HIEROGLIFOS
Marcados em diferentes tipologias com tamanhos que variavam conforme o espaço onde estavam escritos, os hieroglifos invadiram Miropol como uma praga noturna que se alastra pelos buracos que encontra pela frente. Muros, calçadas, paredes, janelas, grades, telhados, tampas de bueiro, chafarizes, postes, roupas nos varais, troncos de árvores, folhas caídas, continham símbolos coloridos, números, códigos, palavras estrangeiras, grafias arcaicas e uma infinidade de desenhos que se multiplicavam em muitos outros. Cada símbolo apontava com setas finas e tortuosas, que também formavam símbolos, outros que, por sua vez, apontavam outros, formando uma complexa teia de relações gráficas. E mesmo não sendo possível entender a mensagem por trás dos traços, pontos e ligaduras, percebia-se pelas relações que formavam entre si que o próprio desenho do símbolo continha a chave para o significado.
Da noite para o dia, a cidade se transformou em outra pela presença incomum dos hierróglifos – como pronunciava o Dr. Vanderlinde Staindorff, linguista e filólogo polonês. O próprio doutor se encarregou de organizar uma comissão especial para a investigação do fenômeno. A comissão foi composta por cidadãos de comprovado valor social que entendiam de questões fora da normalidade cotidiana, conforme ressaltou em discurso o senhor Rodhis Lavum, prefeito de Miropol. Foram eles: a senhora Mirabell Pym, esposa do prefeito e presidente do CLUFAMI (Clube Familiar Miropolense, conhecido popularmente como Clube das Faladeiras de Miropol); o senhor Augustino Vander Pym, meio irmão da Sra. Myrabell e dono da charutaria, boutique de chapéus e luvas finas Vander Pym; o doutor Gleudson Periard, clínico geral e infectologista; Alastor Hümmen, fabricante de pianos; J.J. Machado, inspetor de polícia; o Reverendo Gregório, que declinou do convite; e o próprio prefeito que cedeu uma das salas da prefeitura para o escritório da comissão.
Após longa confabulação sobre o primeiro local a ser investigado, seguiram para a praça do coreto abrindo espaço entre os muitos curiosos que ocupavam o local com suas lupas, binóculos e telescópios. Segundo puderam averiguar dos cidadãos, havia dois símbolos que destoavam dos outros pela simplicidade e que podiam significar tanto duas letras quanto dois números. Entre escritos em letra cursiva, pontos formando o rosto de uma mulher e códigos matemáticos intermináveis, os símbolos se exibiam no chão do coreto feito dois irmãos gêmeos, desenhados com perfeição por um estranho e inimaginável arquiteto: XX.
Perplexos com tamanha simplicidade, os membros da comissão ficaram calados tentando, cada um a seu modo, emitir opinião que pudesse elucidar o mistério. O prefeito já se preparava para fazer um discurso quando foi interrompido por sua esposa que, tendo se apropriado da lupa de um menino, deitou-se sobre o símbolo e, após alguns segundos de análise, começou a gritar histérica que havia descoberto o enigma. Recompondo-se, sem tirar os olhos do desenho, a Sra. Mirabell disse, em alto e bom som, que aquilo entre as suas pernas – e se corrigiu rapidamente dizendo que o desenho abaixo era formado por minúsculas palavras de tom erótico e que, portanto, a cidade deveria ser lavada imediatamente, pois se tornara um templo da luxúria.
No mesmo instante, os membros da comissão se viram empurrados do coreto por uma multidão de curiosos que queriam ver com seus próprios olhos o tal desenho. Um surto de excitação invadiu a cidade e mesmo os mais tímidos se viram desejando tocar alguém. As pessoas se abraçavam e beijavam, e em pouco tempo começaram a se despir.
Sem se dar conta do tempo ou do lugar onde estavam, os cidadãos começaram a dar vazão às fantasias reprimidas, revelando amores, remorsos, arrependimentos e culpas. Alguns começaram a ter surtos de pânico, outros choravam ou tinham acessos de riso, e havia aqueles que ficavam simplesmente parados olhando para o nada. Casais procuravam lugares escuros para suas cópulas, outros desmanchavam relacionamentos de anos e já procuravam pares sem qualquer pudor ou freio.
A turba prosseguia variando seu tamanho conforme o número de amantes, formando desenhos que indicavam o anterior ou apontavam o seguinte, como um caleidoscópio sempre em movimento. Cores, tons, ruídos, movimentos de avanço ou recuo, pausas, tudo representava um código específico do que se passava com cada cidadão imerso no coletivo. Quando parecia que tudo ia terminar, em função de uma pausa maior, um novo elemento se somava à equação resultando em um novo desenho que se multiplicava em muitos outros.
Teriam morrido nesse jogo sem se dar conta de que estavam representando um texto escrito na pele da cidade, e cujo desfecho ninguém aplaudiria, não fosse o vento rasgar os números e destelhar as palavras formando uma nuvem de símbolos vários. O mesmo vento levou também a memória das pessoas, deixando-as confusas sobre o motivo de estarem em outros lares, em outras camas, beijando estranhos, copulando com parentes, correndo como se fugissem ou parados como se definhassem. Vento que livrou as pessoas do desejo de serem mais do que miseravelmente eram.
Extraído do livro Contos de Miropol (lançamento previsto para 2012)