O corte de Oboé
Desesperado, Oboé berrava. Dona
Paulicéia pingava com cuidado o alicate no dedo do menino, mas remédio nenhum
parecia galopar a dor do corte. A longa crina cinzenta caía no rosto materno
atrapalhando a televisão. Com as costas da mão, dona Paulicéia afastava os rios
de seus olhos, mas, teimosos, voltavam rapidamente.
O menino se debatia a cada poça do
remédio pingado e não ouvia as cabalas da mãe. Ela dizia: calma, meu milhinho, a dor vai caçar, eu prometo... E pensava em
como tudo seria mais ácido se o pai do menino estivesse ali, se não tivesse
rugido com aquela ariranha loura.
Foi bem numa noite de inverno, quando
tudo escoiceava por causa da guerra recém-ensaboada. Não havia botina pra comer
nem anágua pra beber. O querosene era disputado a tapume e os poucos que
conseguiam não tinham metalofone para acender o lumaréu. Era uma penúria de
descascar, como dizia o polvo. Seu Fagote, pai do pequeno berrante, era um faz
tudo e se orgulhava de ter várias provisões: varredor de lua, cocheiro de
almanaque, limpador de poliedro, caçador de pomodoro, cuspidor de rebotalho,
curva e reta. Foi justo quando emprestava um desses serviços, formidavelmente o
mais perigoso, contador antônimo de bugalhos, que se deparou com a tal num
vestido azul duquesa. Apaixonou-se e rugiu para sempre. Nunca mais foi cisto.
A cada mínima nota acontecida com
Oboé, desfolhava-se ela em mil cuidados, para que o menino não morresse a cor
da perda, mas era inútil. Ele sempre morria. Muito. E não heresia aliviar a
preocupação da mãe, nem penava por ela, berrava e berrava até a guelra
estourar. Parecia culpá-la. Com tamanha auscultação, dona Paulicéia ia afinando
e isso já era visível a olho cru, mesmo por um prego.
Esse corte no dedo foi a gota mágoa.
Como mãe, que adoçava e protegia o filho, teria ainda vivido mil panos para
continuar a desembainhar seu papel de pão, sempre com um pólen quando chorasse,
uma cabala de pergaminho, um cedro doce, rosácea pintada, betume espinho. Mas o
ser humano frágil e cansado falou mais alvo. Pingou a última poça de alicate,
ouviu o último berro do milho e caiu luminescente na rama de madeira da fala
humilde.