Trecho do conto "A última biblioteca" que faz parte do meu livro de contos "O beijo atrás do poste' (lançamento em 2013).
Setenta e sete livros
empilhados começam o gigantesco emaranhado da biblioteca. Do lado oposto, quase
bloqueando a entrada, a réplica em terracota de Gizé e Quéfren. Assim
dispostas, precariamente, as sentinelas competem pelo território e pelo direito
de morrer primeiro: de um lado, Tolstoy, Pirandello e Drummond – na altura dos
olhos enigmáticos da esfinge, que não deixam claro sua preferência – conversam sobre
quem cairá primeiro e, com gritos mudos, especulam a eternidade e o que pensam
seus vizinhos; do outro, a ponta esfacelada da pirâmide, por capricho do tempo
não do artesão, espiona constantemente sua rival, do topo empoeirado (Borges) à
base não encoberta pela cabeça desgastada da esfinge (Orwell). Entre as partes,
ponderando, folha solta, datilografada e carcomida, aguarda o momento de se
retirar da arenga pelo influxo de um vento menor.
No rastreio pelo carpete
bolorento a cena se repete, de um lado a outro, formando as margens de um rio
sem afluentes, com árvores de livros que se embaralham adensando a confusão. Aqui
e ali, mais folhas: boiam e se permitem enquanto, do teto, a noite avança em
mergulho que esconde estrelas. Rente ao chão, depressões ou buracos, dependendo
do ângulo em que se olhe, surgem à medida que se avança – exigem desvios
complicados que, tanto para a esquerda quanto para a direita, aumentam o risco
de se esbarrar em qualquer coisa que desequilibre o todo. As paradas para se
ter a noção do caminho percorrido impõem não que se olhe para trás, mas que se
debruce com cuidado sobre os buracos escuros. Como se fossem espelhos, inevitável
ao olhar: o quê, além da camada fria da noite, escondem?
(...)
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