24 de out. de 2012


Pequena crônica sobre um cadáver



     Como de hábito, passo por um de meus sebos. Cumprimento um, outro, observo o que passeia pelos esotéricos, o que folheia os periódicos, o que para diante dos best-sellers, percorro as estantes e chego à mesa de seu Ananias (sim, Ananias!). Ele sorri (já desisti de contabilizar a fortuna que lhe passei ao longo dos anos). Alguma novidade? Ele puxa seu bloco de folhas mal cortadas e folheia. Não, nada. Agradeço e me preparo pra sair antes que comece a espirrar. Viro-me já com o rabo de olho nos romances. Dou de cara com uma menina linda entrando. Cuspo meu coração palpitante que por sorte não lhe bate na cara. Ela não me dá atenção. Pairo no conjunto de sua beleza, no rosto branco onde duas jabuticabas desafiam a natureza e existem azuis, nos cabelos fartos que escorrem pelo corpo como uma cachoeira de águas escuras, mas não deixo de notar sua dificuldade com a bolsa cheia de livros. Tento ajudar, mas ela vence a fraqueza pela rapidez com que deposita a bolsa sobre a mesa. Sinto-me vencido por uma autêntica amazona. Penso no que falar, quando quero sou imbatível em abordagens iniciais. Pela primeira vez ela me olha. Olhar puro, que é ou não é, quer ou não quer. Aquele não queria. Devo ser pra ela como essas edições que entulham as estantes e podem ser encontradas em qualquer sebo do país. Vou me afastando devagar até parar diante do saldão. Escrava Isaura do Bernardo Guimarães por 2 reais. É deprimente. Meto a mão e folheio. Um vislumbre do meu tempo de escola que não chega a ser uma madeleine. Liberto a escrava da fileira onde as K7´s speak-up´s predominam e devolvo-a para a estante destinada ao cânone brasileiro. Decido ir embora. Viro-me para mais uma espiada na menina linda e sou assaltado pela surpresa de vê-la me observando com atenção. Seu Ananias me salva da paralisia com sua voz alta e sonora. Chego à mesa sentindo o olhar dela cravado em mim. Me dou conta de que há muito tempo não me sinto vibrar por uma mulher com tamanha intensidade. Normalmente é como um palpitarzinho de asas, um quererzinho aqui, ali, um ah quem sabe, deixa fluir, ela é isso, aquela é aquilo, gosta de mim, mas é comprometida, fuma, é muito nova, é muito velha, é muito isso, muito aquilo... Encaro-a com confiança, afinal não sou mais um menino. Vacilo. Como é possível tremer assim, jesus?! Será que ela quer me dar o telefone?, devaneio. Seu Ananias me chama novamente. Você é mesmo sortudo, rapaz! Estende um livro em cuja capa se lê: A Menina Morta, Cornelio Penna. Seu Ananias pega o bloco de folhas mal cortadas e com uma caneta vermelha risca o primeiro livro da minha lista de pedidos. Falei pra ela que você quer comprar, diz como se eu fosse um cliente ilustre. Sinto-me bem. Abro a boca pra falar, mas fico mudo como o menino antes do primeiro beijo. Era da minha mãe, ela diz. Tem a assinatura dela na capa. E o seu telefone, tem?, penso. Quanto quer, pergunto. Seu Ananias olha pra mim e sorri. O diabo do velho simpatiza mesmo comigo! Não sei, 15 reais?, ela vacila. Saco na hora a carteira e tiro uma nota. Fica com 20, pela assinatura. Ela pega a nota e sorri, os dentes dela são mais amarelos do que eu esperava, mas mesmo assim lindos. Ela agradece e se vira pra continuar a negociação. É minha deixa. Saio rápido, quase correndo, antes que ela tenha a possibilidade de descobrir o que fez. Desconfio que até mesmo seu Ananias não tem ideia do valor do livro na internet, porque se soubesse compraria dela por uns 5 reais e venderia pra mim por uns 100, e eu ainda compraria... Entro em casa ávido, abro o livro e começo a ler. Nem me preocupo em limpá-lo. Primeira, segunda, terceira página e só o que vejo são dois olhos azuis num rosto lindo, o cabelo desaguando no corpo firme. O cheiro de poeira invade minhas narinas e começo a espirrar, pronto! O sr. imbatível em primeiras abordagens provou o que é na verdade: um imbecil, um idiota inepto, uma nulidade. Quanto quero?, QUANTO QUERO? Você tem ideia de que esse é um dos romances mais importantes da nossa língua, um dos mais bem escritos? Que passou despercebido durante um bom tempo e que foi resgatado graças ao bom senso do crítico tal e qual (óbvio que citaria nomes pra impressioná-la mais ainda), e que hoje custa mais de cem reais na internet?! É artigo raro, raríssimo! Ainda mais sendo vendido por você (isso seria demais, tipo cantada barata?). A essa altura ela ficaria espantada com minha explanação, talvez até corasse pela sua ignorância no assunto. Exclamaria um "nossa!" e eu aproveitaria pra convidá-la a negociar melhor o valor do livro em algum café próximo. Papo vai, papo vem, risos aqui, acolá, nossa como você é honesto, inteligente, como você é bonita, cheirosa, telefone anotado no guardanapo, beijos, dias depois cinema no fim de tarde (Intocáveis, com certeza!), jantar e aí sim leitura. Talvez até de graça! Depois dessa, imbecil, o troféu de campeão mundial em primeiras abordagens já é seu. Agora lê, lê seu livrinho precioso, e espirra! Espirra tudo o que tem direito sobre o cadáver da menina morta.



22 de out. de 2012

Trecho do conto "O beijo atrás do poste" que dá título ao meu livro de contos 'O beijo atrás do poste' (lançamento em 2013).



     Quem beijava atrás do poste não era eu – nem ela –, assim como a sombra derramada na calçada não era do mesmo sol que me queimava o rosto. A mão escancarada, passeando pelo corpo jovem dela, não era a minha: segurava a solidão de um livro fechado (e não o seio macio). Onde estaria então? Naquele amor atrás do poste, mais do meu desejo que daquela lascívia? Não seriam minhas as mãos naquele corpo firme? Não! Onde estou então, me perguntava.
     Imaginava ela naquela boca: era ela! O beijo – as bocas escondidas pelo concreto e pela sombra, ambas esvaindo-se, febris, alimentadas pelo contato da carne delicada e úmida – não pertencia a eles: pertencia a mim, a ela. Podia, naquele instante, no beijo deles, partiturar seus movimentos e pausas; reger grunhidos, moleza, tomadas de fôlego, arrancadas, mordidas, beliscões, suspiros; contemplar o rubor em forma de manchas na pele branca e sardenta dela. Sentir seus poros, pelos, mamilos, nuca de bicho acuado, a calcinha molhada.
     O meu corpo vivo no corpo dele roçando-se no corpo dela, delas, buzinando contra o torpor do dia, estripando o tédio, a monotonia, as coisas, a rotina. A serpente despertando em mim, movimentando a folhagem, passeando livre entre os brotos, entrando e saindo dos buracos, tocas, arapucas escondidas, subindo vergalhões e vigas, arrebentando o reboco malfeito, perdendo-se, sumindo de vista, deixando a pele fria no silêncio atrás de si. Fora de mim, do que me pertencia, pulsava em harmonia perfeita com aqueles corpos. 

  (...) 


Trecho do conto "O homem-aranha" que faz parte do meu livro de contos 'O beijo atrás do poste' (lançamento em 2013).


     Eles capturam a paisagem esperando uma tragédia, pensava. Vejam: com suas lentes, mesmo separados, formam um bloco luminoso e barulhento, andaluz – porque é isso o que fazem ao andarem conforme o balé da luz e da sombra, mas é mentira dizer que procuram a beleza dos matizes. Às vezes, precisam espantar o sol para ver inutensílios (objetos de sangue como florezinhas e musgos). Estão sempre à espreita, em eterno estado de alerta – são gatos prestes a disparar ao menor sinal de vida, e hoje terão seu espetáculo.
      Pois olhem: o rato!
     Estava sentado quando a menininha subiu no muro e foi escalando o alambrado; sentado ainda quando o vestidinho rosa se prendeu numa ponta de arame e ela ficou pendurada; quase em pé no momento em que o vestidinho começou a rasgar, o objeto de sangue perdeu sua cor e o bloco luminoso foi se formando diante da cena; completamente em pé quando a menininha caiu no fosso dos jacarés. Parado, em suspensão, ouvia o desespero da mãe, do pai, do irmão, dos avós, familiares distantes, ancestrais esquecidos, cachorro de estimação guardando a casa. 
     Absurdamente, sentiu-se em movimento: pés mal tocando o chão, olhos procurando uma brecha no meio do empurra-empurra das câmeras, pernas correndo sem freio, em esperta velocidade, como o menino que enfim cria coragem e corre para furar a onda, coração desgarrado antes do choque na água gelada. Imaginou-se batendo contra o muro espesso de curiosos, abrindo caminho com a força das garras, alargando espaços, derrubando a câmera de um, fazendo a de outro tremer, atrapalhando as imagens, invadindo o mundo com fúria espetacular.

     (...)