4 de abr. de 2012

COMBUSTÃO

Quando o filho de Durval saiu de casa, o prefeito de Miropol resolveu que aquela seria uma excelente ocasião para instituir mais um feriado na cidade. Os cidadãos ficaram de tal modo felizes e eufóricos com a notícia que houve uma espécie de surto de comoção com direito a ondas de choro, manifestações públicas de afeto ao rapaz e muita champanha estourada.
Precisamente às oito horas e quinze minutos da manhã de uma segunda-feira cinzenta, o gordo – como era chamado pelas faladeiras de Miropol – saiu caminhando pela porta da frente de sua casa, com uma cara muito vermelha e grandes manchas de suor na camisa desbotada. A respiração chiada e alguns lampejos de tosse rouca somados à caminhada vacilante, mas decidida, davam-lhe o aspecto de um personagem circense.
A notícia se espalhou com tanta rapidez que em poucos minutos uma multidão se aglomerava para assistir ao espetáculo. As pessoas não sabiam se choravam, aplaudiam ou saíam a chamar quem não estivesse ali. Em momentos de desequilíbrio, pés e mãos amparavam, com a delicadeza de um martelo esmurrando pregos, os passos do rapaz, mas ninguém se arriscava a ficar muito perto sob o risco de ser esmagado, caso ele viesse a cair. O único a quebrar esse limite foi o sempre apressado prefeito de Miropol – o senhor Rodhis Lavum – que, chegando ao local esbaforido e vermelho, só parou quando trombou com o jovem obeso que nesse momento pareceu mesmo desabar. A gritaria foi geral. Os dois foram escorregando para trás, tentando se agarrar às mangas das camisas um do outro, até que, por um milagre da santíssima, conseguiram parar se equilibrando nos pulsos alheios. Isso só foi possível porque, em matéria de peso, o senhor Rodhis se equiparava mais ou menos ao boi jamaicano – outro apelido carinhoso dado ao jovem pelas faladeiras de Miropol.
Após se recompor do incidente, o prefeito ordenou, em breve discurso, que fosse criado um feriado para aquele dia, conhecido posteriormente como “dia durvalino”. Sob aplausos acalorados, o prefeito desejou sucesso ao jovem na sua jornada e aproveitou para lembrar aos seus eleitores de seus decretos que sempre privilegiavam o povo miropolense. E partiu deslocando ombros e paletós.
Durante o trajeto restante até a praça do coreto, o filho de Durval continuou firme em sua caminhada. Às dez horas e cinco minutos, ele chegou ao pé da escada de ferro que levava ao alto do coreto. Lotando a praça, praticamente toda a população de Miropol esperava para ver o desfecho daquele evento colossal. No primeiro passo escada acima, houve um incrível calar de bocas que só não foi geral porque um choro de criança vindo de algum lugar distante cortou o ar. O quase silêncio se manteve em todo o vagaroso percurso até o alto, sendo rompido totalmente quando o javali inchado – mais uma vez as faladeiras exercendo sua criatividade – cambaleou dois ou três passos para trás, fazendo com que todos gritassem em coro. Antes que se consumasse uma tragédia, o filho de Durval conseguiu se equilibrar e, sob um silêncio de túmulo cimentado, caminhou com relativa desenvoltura até o alto.
Agarrando-se à grade de ferro do peitoril, viu o mar de rostos silenciosos que cravavam nele seus mil olhos coloridos. Encarou-os um instante e, em seguida, contemplou o céu repleto de nuvens cinzentas. Permitiu-se ficar assim durante um longo tempo. Dois anões que tentavam abrir espaço entre a multidão chamaram sua atenção de volta.
– Acho que ele vai pular. – Disse um deles se esticando para ver melhor.
– Vai nada! Vai é dizer alguma coisa. Alguma coisa grande. – Disparou o outro enquanto se enfiava no espaço entre duas bundas. – Aposto cem que não pula.
Abaixando a cabeça, começou a rir como se o espírito de uma hiena tivesse encarnado em seu corpo. Mesmo quem não estava presente na praça se arrepiou com aquela gargalhada sinistra: o excelentíssimo prefeito, que já dormia pesadamente em sua casa sonhando com os espartilhos de sua primeira professora se partindo em mil pequenos corações de chocolate, acordou berrando o nome de sua esposa, a Sra. Mirabell Pym, que naquela hora se encontrava na praça junto as suas queridas faladeiras de Miropol. Quando o relógio da igreja marcou dez horas e dez minutos, o filho de Durval começou a queimar. Não porque tivessem ateado fogo ao seu enorme corpo, mas espontaneamente, como se um raio invisível tivesse acertado sua cabeça acendendo o pavio do seu corpo. Queimando como um grande pedaço de carvão, continuou gargalhando e olhando as pessoas que a essa hora gritavam, fugiam, choravam. Definhou como uma tora que se torna graveto ardente. Sua pele esturricou, seus órgãos internos apareceram sob o tecido adiposo, seus ossos estalaram. O odor do seu corpo invadiu a praça como uma névoa de gafanhotos. Queimou, queimou, queimou.
Ainda com os olhos nas órbitas, olhou os corpos abaixo se trombando como baratas desesperadas pelo veneno, mas tudo o que conseguiu enxergar foi a sua velha casa: a tinta descascada das paredes, as cortinas amareladas presas em laços de fitas largas, o galo de metal que apontava o norte no alto do telhado, o jardim cheio de ervas daninhas com o balanço enferrujado. E quando seus olhos queimaram de todo, imaginou seu velho pai fumando seu cachimbo de ébano, vagarosamente, soltando lufadas de fumaça pelo espaço da sala, a cabeça tombada para trás, as pernas magras cruzadas elegantemente, as chinelas pendentes quase a cair, o rosto enrugado; imaginou-o gritando com a voz rouca: "Hoje é um bom dia para um passeio, meu filho. Por que você não desce daí?".
Antes que perdesse de vez os sentidos, veio-lhe uma lembrança da infância, quando seu pai o pegava no colo e o rodava no ar imitando o barulho de um avião dizendo num grande sorriso: "Um dia, meu filho, você vai ser grande e quando as pessoas te olharem vão fechar os olhos por causa do seu brilho!"

Extraído do livro Contos de Miropol (lançamento previsto para 2012)

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