29 de mar. de 2012

ESQUINAS


Durante os anos em que viveram no seu jogo de gato e rato, não havia um único lugar em Miropol onde não se debatesse as teorias a respeito dos dois. Mesmo que outros assuntos estivessem sendo discutidos, logo alguém se encarregava de expor uma teoria nova, que não passava de uma variação de outra existente, inventada, na maioria das vezes, pelo próprio expositor. Eram raros os cidadãos que não tinham uma opinião formada sobre o fenômeno, apesar disso ninguém era capaz de afirmar, com absoluta certeza, qual a verdadeira causa para os dois nunca terem se encontrado.
Não se sabia ao certo quem foi a primeira pessoa a perceber o fato, muito menos qual a primeira explicação a respeito, mas todos concordavam que o senhor Germano Valadão, professor de física aposentado, possuía uma das mais brilhantes teorias. Segundo ele, os jovens não se encontravam por um fenômeno chamado sincronismo hiperbólico. Utilizando-se de extensas fórmulas matemáticas, que deixavam todos hipnotizados, explicava que os dois sempre começavam ou paravam as suas trajetórias exatamente no mesmo instante e se deslocavam em velocidade sempre igual, de modo que, pelas leis da física, jamais se encontrariam. Apesar da alta credibilidade de que gozava o ex-professor junto à sociedade miropolense, essa não era a hipótese mais aceita, talvez pela dificuldade de ser plagiada ou variada. Os cidadãos preferiam acreditar na teoria de que os dois foram amaldiçoados ao nascerem.
Uma das variações mais famosas dessa teoria conta que, pouco antes do nascimento das crianças, as mães foram juntas se consultar com uma cigana, acampada nos arredores da cidade. A cigana teria dito que os bebês só teriam sorte na vida se o parto deles fosse feito com ela, mas diante da recusa das mães lançou a maldição para que as crianças jamais se encontrassem. O doutor Ezequiel Baltazar, médico que realizou o parto das crianças, era a pessoa que mais combatia essa teoria chegando a escrever em suas receitas que nunca houve a tal cigana, nem qualquer outra pessoa que tenha amaldiçoado os dois. Mesmo assim, essa teoria ganhou tantas variações como a quantidade de folhas que caem no outono.
Curioso é que, apesar de crescerem rodeados por cochichos e teorias mirabolantes, os dois só entenderam o que se passava na véspera de completarem 8 anos. Na ocasião, a confeiteira Niete tinha ingredientes para fazer apenas um bolo de aniversário e, não querendo prejudicar um dos dois, resolveu que não faria bolo algum. As crianças, cada uma por suas próprias ideias, foram perguntar à confeiteira o motivo de tamanha injustiça. Quando ficaram sabendo que havia outra criança que fazia aniversário no mesmo dia, resolveram que a encontrariam e acabariam com aquela afronta imediatamente.
Começaram então a se perseguir, inventando artimanhas e arapucas para pegar o outro numa ladeira, num canto de praça, num recuo escuro. Quando um dobrava uma esquina, o outro aparecia no começo da rua já se encaminhando para o mesmo ponto; se um deles invertia de súbito a trajetória, o outro fazia o mesmo. Certa vez, tentaram, no mesmo dia, ficar parados para ver se o outro passaria no local onde estavam, mas julgando ser impossível se reconhecerem, resolveram sair correndo pelas ruas e becos da cidade, como se isso fosse recuperar o tempo em que estiveram parados.
Na sua busca, passaram a percorrer as ruas atrás de uma sombra, a subir e descer escadas à procura de um vulto que imaginavam ver, a indagar transeuntes sobre a existência de um ser que pudesse ter qualquer aspecto suspeito e ar de quem procura algo eternamente; passaram a viver nas sombras um do outro, a se alimentar de migalhas deixadas pelo caminho, a beber nacos de sol impregnados nos paralelepípedos ou nas ranhuras das paredes. Viraram fantasmas de si mesmos arrastando a certeza de que se encontrariam na virada da próxima esquina, no final da próxima escada, na curva da próxima vida.

Extraído do livro Contos de Miropol (lançamento previsto para 2012)

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