16 de mai. de 2012


Pai postiço

     Olho meu sobrinho: corre pra lá, pra cá, pega um brinquedo, brinca, larga, pega outro, brinca, torna a largar, corre, chama a mãe, grita, corre, assiste um desenho, canta, corre, brinca, sobe, desce, e assim vai o dia. Experimenta tudo, todos, sem jamais terminar nada, mas não há nada que não faça com toda sua energia, juventude e vida.
     Às vezes, entre uma coisa e outra, para estático por poucos segundos, olhando para um lugar que só ele vê. Percebemos e nos perguntamos onde estará, mas o caos recomeça, atrapalhando-nos. Ninguém sabe que é nesses momentos de pausa que mais reconheço nosso parentesco. Por mais traços que tenhamos em comum, físicos ou de personalidade – e são muitos – sinto-o como sangue muito mais quando ele sai de si, quando deixa de lado sua herança e condição de ser infantil para existir na sua dimensão inacessível.
     Nesse espaço sem margens, somente lá, com ele, consigo imaginar-me como parte, podendo ser de fato filho, irmão, sobrinho, tio, pai e, num consenso maravilhoso da natureza, filha, irmã, sobrinha, tia, mãe. No reverso desse existir, teríamos as conversas que não podemos ter sendo quem somos, por exemplo as que conviriam a um pai ter com seu filho a respeito de tudo o que porventura pudesse surgir como assunto: quem se leva para a mesa (e para a cama), como se deve morrer, quando se deve viver, o que fazer com as palavras e o silêncio. Ficaríamos assim por dias, suspensos e infatigáveis.
     Olho-o novamente. Disfarço, atrás de um sorriso, meu constrangimento de pai postiço, virado pelo avesso, ainda perdido em alguma vereda paralela e marginal, recebendo de volta sua incapacidade de esconder o que realmente quer dizer. Seu coração, assanhadamente aberto para mim, gritando, correndo pra lá, pra cá, subindo, descendo, me chamando, vamos pai, vamos mãe, finalmente parando para me esperar, vamos, entre comigo. Desvio o olhar e repreendo-o, que negócio é esse, me respeite, sou seu pai, não, de castigo, não pode brincar. Seu sorriso branco, desafiador, seu gingado, seus atalhos íngremes, suas rimas raras, seu carinho punidor.
     Imagino admirado como seria a minha vida de pai, mãe, junto a esse filho que não é meu, sangue do meu sangue, que corre pra lá, pra cá, pega um brinquedo, brinca, larga, pega outro, brinca, torna a largar, corre, chama a mãe, grita, corre, assiste um desenho, canta, corre, brinca, sobe, desce.

2 comentários:

Nanda Sioux (L.Spectrum) disse...

Lindo texto!

Me identifiquei muito com essa crônica, pois vivi os dois lados da história, sendo sobrinha/filha postiça na infância e sendo tia/mãe postiça atualmente... Perceber os tantos detalhes me emocionou bastante. :)

Parabéns!

Acacia Pinto disse...

A vida nos mostra a beleza do amor através de pequenos gestos que identifica quem passou e ainda passa por ela! Ver tio, sobrinho, pai, filho juntos faz acreditarmos que vale a pena...